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Manu

A chave dos mistérios de Lost

Que "Lost" é um fenômeno não é novidade para ninguém, mas o sucesso da série não se deve a galãs de encher os olhos, romances açucarados ou piadas idiotas. O grande mérito, na realidade, é aquele que não se percebe logo de cara. O que te prende na cadeira por horas, horas e horas é a enorme quantidade de perguntas sem respostas imediatas e os mistérios aparentemente sem nexo que rondam a trama e os personagens. Mas eu disse aparentemente!

Um bom caso é a regra dos 108 minutos, na qual os perdidos precisam digitar o código "4 8 15 16 23 42" neste intervalo de tempo no computador do bunker, pois não sabem o que acontecerá se a regra não for cumprida. Os números não parecem dizer muita coisa, pois não seguem nenhuma lógica matemática. Parecem: A soma de todos eles dá 108, o número de estrelas sagradas no Taoísmo e na astrologia chinesa; o número de nomes do deus Krishna no Hinduísmo e o número de imperfeições humanas segundo o Budismo. 108 minutos também é o tempo que alguns satélites de órbita baixa precisam para dar a volta no planeta, ou seja, é o tempo necessário para que eles passem sempre pelo mesmo ponto. E mais: reagrupando os números em coordenadas geográficas, chega-se a 4,815º de latitude norte e 162,342º de longitude oeste, que dá em um ponto entre a Austrália e os EUA, bem no meio do oceano pacífico: a exata localização da ilha.

Tudo bem que os maiores mistérios da ilha continuam guardados a sete chaves, mas, caso você não sabia, para cada detalhe da trama existe uma explicação filosófica, psicológica ou científica, publicadas na edição deste mês da revista "Super Interessante". De Jean-Jaques Rosseau a Mao Tsé-tung, da psicologia behaviorista (do comportamento) ao Hinduísmo (religião oriental), estes "guias" podem ajudar os fanáticos a montar o quebra-cabeças.

Para começar, a maioria dos personagens tem suas idéias e comportamentos ligados a grandes filósofos. O mais enigmático personagem da série, John Locke, é uma referência clara a outro John Locke, que viveu no século XVII. Segundo o filósofo inglês, todo o conhecimento vem da experiência, como se nós nascêssemos com uma folha em branco na cabeça, que ele chama de "tábula rasa" – reparou que este é o título do segundo episódio da primeira temporada?

Pois é! Neste capítulo, os sobreviventes nada sabem sobre a ilha. É como se eles tivessem que pegar uma folha em branco e começar do zero, anotando as verdades daquele mundo complexo e estranho. Locke, o personagem, é o primeiro a fazer isso, por isso é o único que aprende a lidar com naturalidade diante das bizarrices do local. Ele, que voltou a andar milagrosamente depois do acidente de avião, declarou: "Eu olhei nos olhos desta ilha. E o que eu vi era lindo". Eis aí outra referência a John Locke, o filósofo, que defendia a tese de olhar para o mundo só com a razão, ao invés de dar ouvidos às superstições.

E as semelhanças não param por aí. Anthony Cooper, pai do Locke da série, é também o nome de um conde inglês que foi como um pai para o filósofo. Depois de ser curado de uma infecção mortal no fígado por Locke – ele era formado em Medicina -, introduziu o pensador no mundo que o consagraria: a política. Com o personagem não foi muito diferente. Cooper sobreviveu depois de receber um rim do filho, e lhe ensinou todos os truques da caça, a sua especialidade.

Na segunda temporada, depois que os perdidos conseguem abrir a escotilha de um bunker no meio da floresta, vem a revelação: "Bem-vindos. Sou o Dr. Marvin Candle, e este é o filme de orientação da estação 3 da Iniciativa Dharma." Trata-se de um grupo de pesquisas voltado para a "ôengenharia social utópica", leia-se controlar e conduzir o comportamento das pessoas – foi o que fez o ditador Mao Tse-tung, ispirado nas idéias de Locke, na China dos anos 40.

Foi também o que fez o psicólogo americano B.F.Skinner, conhecido por suas técnicas psicológicas para modificar o comportamento humano, com a idéia de estabelecer uma sociedade mais criativa e produtiva. O cara, inclusive, é citado no filme encontrado no bunker, que avisa: "A Iniciativa Dharma foi criada em 1970, seguindo os passos de visionários como B.F. Skinner."

Para quem não lembra, ele foi o responsável pela criação das caixas Skinner, aquelas nas quais um rato deve pressionar um botão para conseguir comida. Botão? Aí está a referência para a regra que diz que os perdidos devem apertar um botão a cada 108 minutos, induzindo a eles um novo comportamento. Seria então a ilha inteira uma grande caixa de Skinner? Neste caso, os ratos que não se adaptarem vão caindo fora.

Outra personagem que vive à sombra de um grande filósofo é Danielle Rousseau, que chegou à ilha com um grupo de cientistas e acabou como a única sobrevivente. Já deu pra sacar pelo sobrenome, né? De qualquer forma, Jean-Jaques Russeau, francês que viveu no século XVIII, é conhecido por ter criado a figura do "bom selvagem", aquele que não tem vícios, não cheira nem fede – no sentido literário, é claro. Alguém duvida de que Danielle seja exatamente isso?

E as referências continuam. Segundo Russeau, a ciência é inimiga da sociedade. Traduzindo para o dialeto Lost, a iniciativa Dharma – um grupo de pesquisa científica – seria, a grande inimiga de todos. Ela poderia, então, afundar a ilha, se levarmos ao pé da letra outra declaração de Rosseau, o filósofo, que dizia que as sociedades artísticas e científicas, com o Egito Antigo, "afundaram no vício e na imoralidade". Na imoralidade não podemos dizer, mas no vício, com certeza, grande parte do planeta afundou.

Fonte: Jornal O POVO